A Lenda do Barba Azul – o predador interior
- Danielle Apocalypse
- 18 de jan. de 2024
- 9 min de leitura
É incrível como a leitura faz despertar milhões de ideias e pensamentos. Faz ponderar e refletir sobre diversos aspectos e variados assuntos – coisas que de repente, nunca havíamos pensado antes ou, que simplesmente ainda não estávamos prontos para assimilar de tal forma no momento. A leitura abre portas para dentro de nós mesmos.
Eu tenho o costume de ler, e me interesso por quase todos os gêneros, mas irá depender do meu momento ou estado de espírito a escolha daquilo que vou ler.
Procuro me basear por inúmeras referências, como amigos, familiares, mídia, mais vendidos ou comentados, e autores com os quais me identifico e de quem já li algumas obras. Confesso que muitas vezes escolho o livro pela capa, e até hoje tive sorte; não me arrependo de nada que já tenho lido.
Uma vez li, em “A Sombra do Vento”, do espanhol Carlos Ruiz Zafón, que é o livro que nos escolhe. Acredito nisso.
Atualmente estou lendo “Mulheres que correm com os Lobos”, de Clarisse Pinkola Estés, analista junguiana, doutora em estudos multiculturais e psicóloga clínica.
Para quem ainda não leu, ou não ouviu falar dele, neste livro a autora disserta sobre os diversos aspectos da psique feminina revelando a psicologia da mulher em seu estado mais puro na busca de um autoconhecimento. Ela chama este estado de psique da “Mulher Selvagem”.
O Livro – A Lenda
No livro, a autora explica e ilustra através dos mitos, histórias, lendas e contos folclóricos a psique feminina, e tudo o mais que a constrói e nos fazem agir da forma como agimos desde o começo dos tempos até o atual.
Ela analisa através do seu conhecimento e estudos o que cada conto representa do seu ponto de vista psicológico. E um dos contos que mais me impressionou foi a “Lenda do Barba-azul”.
Neste conto, o personagem Barba-azul representa o que a autora chamou de “predador natural” da psique, uma espécie de força ou instinto específico, que segundo a autora, precisa ser contido e mantido em nossa memória, para ser usado de tempos em tempos, em momentos bastante específicos.
Em outras palavras, uma espécie de “consciência-inconsciente do mal”. Aquele diabinho perverso no fundo da memória que nos atenta a fazer algo diferente, fora do normal, perigoso, desconhecido, ou proibido. Uma espécie de alerta para algo que está por vir, e que pode representar um perigo.
Resumindo o conto descrito pela autora, este trata de uma mocinha que é iludida pelo Barba-azul, um homem sinistro e misterioso, e ela, por ingenuidade, é levada a crer, por si própria, que ele é um bom homem e que poderá dar a ela a vida que sempre sonhou.
No entanto, o Barba-azul, depois de casar-se com a mocinha, resolve testá-la oferecendo-lhe uma falsa liberdade para fazer aquilo que bem quiser, exceto uma única coisa – usar uma certa chave de um misterioso cômodo da casa. A mocinha, ingênua e tomada pela curiosidade, acaba traindo a confiança de seu marido fazendo exatamente aquilo que lhe foi proibido, e quase é levada à morte. Porém, no final, a mocinha consegue reunir forças e escapar de seu predador, que acaba tendo um final terrível.
O predador e a presa – as armadilhas
O curioso e intrigante, não é o conto em si, mas tudo aquilo que ele representa e que a autora nos explica. Pela autora, o Barba-azul representa uma força obscura dentro de nós mesmas, que pode até nos levar à morte, se não tomarmos o conhecimento devido à tempo.
Segundo a autora:
“Compreender o predador significa tornar-se uma animal maduro, pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez”.
Quantas vezes nos deixamos levar por alguém ou por uma circunstância quando estamos mais vulneráveis? Quantas vezes somos ingênuas o bastante para nos convencer de uma coisa qualquer simplesmente porque desejamos algo ou alguém naquele momento? Quantas vezes nos colocamos em situações que nos falta experiência para lidar com elas, e acabamos nos dando mal?
Quantas vezes entramos em relacionamentos fadados à acabar mal?
Muitas vezes somos ingênuas e nos convencemos de entrar em situações confusas, ou que desconhecemos por inteiro.
Na real, o ser-humano é capaz de se convencer de qualquer coisa para satisfazer seus próprios desejos internos mais profundos. Eu mesma me identifiquei muito com esta passagem e me vi em diferentes situações de igualdade.
Quantas vezes nos convencemos de que algo, ou alguém é bom para nós, quando sabemos ou notamos alguns sinais que nos mostram exatamente o contrário. Ignoramos deliberadamente aquele alerta de perigo e nos convencemos do oposto.
Como a mocinha do conto, quando ainda somos imaturas, ou desconhecemos este “predador”, somos propensas a enxergar somente aquilo que está na nossa cara, e ignoramos aquilo que não queremos ver. Eu mesma já fiz muito isso, e tenho certeza de que continuarei fazendo em muitas outras situações diferentes.
Conheço mulheres que jamais teriam se casado não fosse pelo desejo sucumbido imposto pela sociedade de se enquadrar às normas culturais e até parentais. O mesmo acontece com outras mulheres que jamais teriam tido filhos, se soubessem como realmente se sentiriam a respeito.
Quantas outras mulheres conhecemos que desistiram de suas carreiras profissionais para se dedicarem à família por pressão, quando suas profissões eram aquilo que mais a identificavam com o mundo externo? Ou mesmo o que falar das mulheres que mudaram de emprego ou profissão convencidas de que seria melhor ganhar mais; ou tomaram essa decisão apenas para agradar familiares, e hoje se sentem frustradas por não estarem fazendo aquilo de que gostam.
Falta auto-conhecimento ao tomar decisões e para agir em determinadas situações. Somos levadas a acreditar em falsas verdades, e ao invés de vivermos livres de posse de nossos próprios pensamentos e crenças, escolhemos viver falsamente, acreditando que somos felizes desta maneira, quando na verdade, estamos sendo vítimas de nossos próprios predadores internos.
A chave – a cura – o plano
A chave para este dilema, como a chave descrita no conto, está na forma como tomamos conhecimento do nosso predador, como iremos identificá-lo, e no processo, como lidar com ele e finalmente derrotá-lo. Quando estamos magoadas, vulneráveis ou ainda ingênuas, é mais fácil cair nas garras deste predador.
Como a mocinha do conto, somos facilmente seduzidas com inúmeras promessas, sejam de conforto, ascensão social, diversão, arte, beleza, seja de um relacionamento duradouro. O ponto crucial, segundo a autora, é fazer as perguntas certas, de forma honesta, que nos levará às respostas concretas.
O que eu quero para mim realmente? No que eu acredito? Por que desejo tal coisa ou pessoa neste momento? O que isso realmente representa para mim neste momento? Estou me iludindo? Sei para onde estou indo? Que consequências isto irá me trazer?
Na lenda, a mocinha se depara com a sua própria morte, consegue dar uma reviravolta e se safar dela. Fingir que não aconteceu algo para não ter que lidar com a verdade é cavar a própria morte.
É preciso fazer as perguntas e obter as respostas, seguir nossos instintos, enxergar no escuro, reunir energia psíquica, saber a hora de partir, recuar e se preparar.
Ganhar tempo, analisar, investigar, interpretar. Tudo isso deve fazer parte de uma estratégia, de um plano de sobrevivência para vencer em uma situação seja ela qual for. Seja um problema familiar, um término de relacionamento, uma mudança de emprego, ou até se desprender de uma cultura ou pessoa opressora.
É preciso parar para ganhar tempo, esperar a hora certa de agir, planejar a estratégia e reunir forças antes de realizar qualquer mudança externa, ou seja, dar o seu grito de liberdade quando for necessário.
Mesmo que você esteja exausta, infeliz, desacreditada, é importante que perceba a sua própria destruição ou o perigo que a cerca, e planejar a sua fuga.
É necessário forçar-se a seguir adiante, para dar o seu grito de liberdade e destruir o predador, ou seja, aquilo que lhe faz tanto mal.
Segundo a autora, existe uma hora para tudo – uma hora para estremecer, de correr de pavor e a hora de simplesmente não agir desta forma. Pois, no momento certo, na hora de agir, uma mulher não deve estremecer e muito menos rastejar – é hora de ressurgir das cinzas e dar o bote final.
Ainda não terminei de ler o livro, somente cheguei ao final deste conto. Mas, achei tão revelador que me senti obrigada a dividir tudo isso com vocês, almas femininas.
O meu propósito aqui é tirar as vendas dos olhos de todas nós, destruir as amarras, dissipar a cortina de fumaça de uma vez por todas, sejam lá quaisquer que sejam as situações de presa-predador em que nos colocamos de vez em quando em nossas vidas. Uma verdadeira lição para levar conosco e passar de geração em geração.
Não importa a idade, acho que o que vale aqui é a vivência de cada uma de nós, a maturidade e imaturidade, a experiência e inexperiência, a ingenuidade e sagacidade de cada uma de nós ao depararmos com qualquer situação nova que nos represente algum perigo ou exija de nós uma maior atenção.
O Grito
Mas, vocês podem estar se perguntando: Como dar este grito? O grito nada mais é que reunir todos aqueles aspectos internos da nossa psique que foram treinados para lutar até a morte, se assim for necessário.
A autora nos explica que estes aspectos são aspectos defensores da nossa mente, muito associados às figuras masculinas, mas que muitas vezes não são tão acessíveis à nossa consciência como deveriam.
Segundo a autora, o entusiasmo e a natureza de combate ou luta de muitas mulheres não estão perto da consciência para serem eficazes. Por isso, ela nos alerta para o fato de que tudo deve ser ensaiado e convocado, em uma só força – no livro, como se fosse um redemoinho de força de vento.
Quando somos realmente capazes disso, emergimos da ingenuidade e agora mais sábias procuramos o auxílio daquilo que é chamado de “animus” pela psicologia junguiana – uma energia masculina – um elemento parte mortal, parte instintual e cultural da psique feminina, segundo a autora. Em outras palavras, qualquer figura masculina que se possa associar, seja um filho, marido, amante, amigo, até um estranho.
De acordo com ela, quando esta natureza masculina é saudável, ela é capaz de amar a mulher em que ela reside, e acaba nos ajudando a realizar qualquer coisa que desejamos na busca da consciência. Uma espécie de ponte, como a autora retratou, entre os mundos internos e o sentimento para com o mundo exterior.
Quanto mais forte for este animus, maior será o seu estilo, capacidade e desenvoltura para manisfestar suas ideias e seu trabalho criativo de forma concreta no mundo.
Separar para reunir
No livro, o Barba-azul é morto e cortado em pedaços para que os abutres se alimentem dele, mas a lição aqui não é exterminar por completo o “barba-azul” que nos circunda e aterroriza a todo tempo, mas saber identificá-lo, investigá-lo e vencê-lo, somente assim poderemos, de fato, enxergar às claras e livremente.
A lenda do “Barba-azul”, segundo a autora, é uma história de “cortes, de separar e reunir”. Como se retratasse um momento específico em nossas vidas de ruptura. Ao destruir o predador, você o desarma e esgota suas forças, para que assim sejam devolvidas à vida para serem transformadas e recriadas. A autora ensina que não podemos fugir dele, devemos enfrentá-lo nos protegendo com nossas verdades, exterminando pensamentos nocivos e negativos antes mesmo que cresçam o suficiente para nos atingir e nos prejudicar.
Desarmamos o nosso predador mantendo nossas intuições e instintos aflorados, e resistindo à sua sedução e investidas. Pegamos o que ele tem de verdade, trabalhamos com estas verdades e jogamos fora todo o resto.
Quando dominamos o nosso predador conseguindo retirar o que nos é útil e, largando todo o resto, voltamos a nos sentir cheias de energia, vitalidade e ímpeto, em uma enorme renovação de forças.
De acordo com a autora, a natureza assassina do predador pode ser usada para o que realmente deve morrer na vida de uma mulher, ou para as coisas para as quais ela precisa morrer na sua vida exterior para dar lugar à outras. Sejam lá o que for. É como ressurgir das cinzas, se recriar, aproveitar os restos para criar um novo ser.
Um final feliz
A lenda do Barba azul é uma lição em especial para aquelas mulheres que já se sentiram encurraladas por algo ou alguém, que foram profundamente magoadas ou assustadas por algo ou alguma pessoa.
As soluções descritas na história supostamente diminuem o medo, dosam a adrenalina na medida certa, mas mais importante de tudo, abrem portas em paredes que pareciam não ter nenhuma abertura. Ou seja, há sempre uma saída quando buscamos a verdade em nosso interior e a enfrentamos com coragem e auto-conhecimento.
A nossa capacidade de fazer perguntas a nosso respeito, de nossa família, de nossos projetos e de nossas vidas como um todo, está presente nesta lição. Segundo a autora, depois de farejar, como um ser selvagem, uma coisa para descobrir o que realmente ela é, a mulher está livre para encontrar as respostas verdadeiras para suas perguntas mais sombrias. E assim é a Mulher Selvagem, sempre pronta para arrancar os poderes daquele que a afligia e que os usava contra ela e reutilizá-los ao seu favor como bem entender.
Só assim somos capazes de agir de acordo com a nossa competência, de acordo com o nosso talento, tomar o mundo nas mãos e agir de modo inspirador e fortalecedor da alma.
Para expulsar o predador, devemos abrir as coisas com chaves ou à força para investigar o que realmente há dentro delas. Devemos usar nosso insight, nossa total capacidade de suportar aquilo que enxergamos a nosso respeito.
Devemos proclamar nossa verdade em voz alta, e ser capazes de usar nossa inteligência para fazer aquilo que achamos que devemos fazer.
A cura ou caminho para a fuga é prestar atenção em nossa intuição, em nossa voz interior, fazer as perguntas certas e de forma honesta, ser curiosa e assim agir com base no que se sabe ser verdade.Só assim, recuperando as forças de nossa psique feminina deixamos de ser vítimas de circunstâncias internas ou externas. Quando agimos assim, não haverão mais intromissões duradouras, saberemos reconhecer logo o que está errado e teremos condições de afastar o predador.
Venceremos o predador e não seremos mais presas, dando lugar cada vez mais à Mulher Selvagem dentro de nós! Venham correr comigo, como lobas, que somos!
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